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Outras considerações sobre o livro: "Eu sou o monstro que vos fala" por Maria Caroline Ofsiany

Foto do escritor: Sessão de PsiSessão de Psi

A história do livro nasce em decorrência de um convite a uma fala que não pode ser ouvida e que depois foi fragmentada/distorcida em vídeos e transcrições (em várias línguas) sem que ninguém solicitasse o texto original ao autor. O convite em questão foi uma apresentação durante uma jornada internacional da Escola da Causa Freudiana, em Paris, sobre o tema “Mulheres na Psicanálise” no ano de 2019. A fim de ampliar o debate, Paul Preciado escreve sua fala na íntegra, já que na palestra não conseguiu ler mais do que um quarto de seu discurso. Em primeiro lugar acredito que este livro deveria ser obrigatório em qualquer formação psicanalítica. É uma leitura para incomodar, provocar, questionar… Penso que não deveria ser possível dizer-se psicanalista sem estar atrelado ao compromisso de construir uma psicanálise para e ao seu tempo.



No início de sua fala, Paul pergunta para a plateia composta de 3500 analistas se existe algum deles que é psicanalista trans ou não binário a fim de saudar tal “querido mutante” (silêncio...) e situa que seu discurso será sobre sua vida como homem trans:

“Eu, um corpo marcado pelo discurso médico e jurídico como ‘transexual’, caracterizado na maior parte dos diagnósticos psicanalíticos como sujeito de uma ‘metamorfose impossível’, situado, segundo a teoria prevalente, para além da neurose, na própria borda da psicose, incapaz, segundo vocês, de resolver corretamente um complexo de Édipo, ou tendo sucumbido à inveja do pênis. Pois bem, é a partir dessa posição de doente mental onde me recolocam que me dirijo às senhoras e aos senhores, como um macaco-humano de uma nova era. Eu sou o monstro que vos fala. O monstro que foi construído pelos seus discursos e práticas clínicas. Eu sou o monstro que se levanta do divã e toma a palavra, não tanto como paciente, mas como cidadão, como um igual monstruoso” (p.14).


Ou seja, de saída o que se exprime é a dimensão da violência de gênero que um discurso e prática clínica pode gerar: o outro enquanto objeto, falar pelo outro, construir um outro “anormal” a partir do “natural” da cisgeneridade da hegemonia psicanalista que “escuta”. Trata-se de trazer à luz muito do que se quer evitar por muitos psicanalistas “clássicos”: uma convocação a se situar enquanto sujeito, que se propõe a ocupar a função de analista, em um regime de diferença sexual inscrito em um dispositivo político. E então, Paul diz:

“Mas por que as senhores e os senhores estão convencidos, queridos amigos binários, de que só os subalternos têm uma identidade? Porque estão convencidos de que só os muçulmanos, os judeus, os gays, as lésbicas, os trans, os moradores de periferias, os migrantes, os negros têm uma identidade? Vocês, os normais, os hegemônicos, os psicanalistas brancos da burguesia, os binários, os patriarco-coloniais, por acaso não tem identidade? Não existe identidade mais esclerosa e mais rígida do que a sua identidade invisível. Que sua universalidade republicana. Sua identidade leve e anônima é o privilégio da norma sexual, racial e de gênero. Ou bem todos temos uma identidade ou então não existe identidade. Ser marcado com uma identidade significa simplesmente não ter o poder de nomear sua posição identitária como universal. Não há universalidade nas narrativas psicanalíticas das quais vocês falam. As narrativas mítico-psicológicas retomadas por Freud e elevadas ao grau de ciência por Lacan não são mais do que histórias locais, histórias do espírito patriarco-colonial europeu, histórias que permitem legitimar a posição ainda soberana de pai branco sobre qualquer outro corpo. A psicanálise é um etnocentrismo que não reconhece sua posição politicamente situada” (p.32).

Tal trecho evidencia a urgência de que reproduzir a psicanálise, em sua teoria e prática, sem esses questionamentos é reproduzir a lógica do colonizador. Esses trechos citados estão só no comecinho desse livro que escancara muita coisa e que ao longo da leitura e discussões me tirou suspiros de que há muito trabalho pela frente e assim encerro com as palavras de Paul Preciado:

“Apelo ardentemente a uma transformação da psicanálise, à emergência de uma psicanálise mutante, à altura da mudança de paradigma que vivemos. Talvez apenas esse processo de transformação, por mais terrível e desmantelador que possa parecer, mereça hoje ser chamado de psicanálise”(p.90).


Por Maria Caroline Ofsiany

CRP 06/145073

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Elaborado por Sessão de Psi 2023

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